Sunday, September 28, 2008

Receita do português

Coloque uma vasilha dentro d’água. A massa só alcançará o ponto exato se os ingredientes forem misturados em recipiente mergulhado na água salgada. Senão, a receita desanda.

Ingredientes:

- Homens pré-históricos do vale do Tejo e do Sado.

-Um punhado de povos indigenas, principalmente Lusitanos. Se possível, da tribo liderada por Viriato.

- Celtas – apenas para polvilhar.

- Romanos.

- Bárbaros: Alanos caucasianos, Vândalos germânicos e escandinavos, Suevos e Visogodos germânicos - estes últimos dissolvidos na civilização romana.

- Mouros: tribos islamizadas do Marrocos e da Mauritânia.

- Uma pitada de árabes.

- Judeus sefarditas (ibéricos) – coloque um punhado entre um ingrediente e outro. Reserve a porção maior para o final da receita.

- Cristãos a gosto.


Modo de fazer:

Coloque na vasilha os pré-históricos. Dê preferência aos que apresentarem características físicas do português contemporâneo: estatura mediana e dolicocéfalos. A arqueologia prova que os pré-históricos ibéricos já se assemelhavam aos gajos pós-modernos – ora, pois.Tampe a vasilha com um pano úmido. Espere-os fermentar até se transformarem em tribos pacíficas e receptivas à ondas migratórias oriundas de vários pontos europeus. Não se preocupe se alguns, sorrateiramente, fugirem pela borda da vasilha.O ancestral do português já cultivava vocação viajeira, muitos chegaram à Inglaterra e à Normandia. Apenas oriente os neofujões para não tomarem o rumo de Brasília. Nunca se sabe o que lhes pode acontecer.Polvilhe um pouco de Celtas. Além do charme, você vai introduzir o domínio da metalurgia e a vocação para o esoterismo. Afinal, quem não gosta de druídas? Além de estarem em moda, eles acrescentarão o toque exótico ao paladar do prato.Lentamente, despeje os romanos. Atenção: vai sair pancadaria. Maneje com calma a colher de pau para driblar Viriato e outros caudilhos que não apreciarão o novo ingrediente. Cuidadosamente, misture os revoltosos, os romanos e as tribos que se lixaram para a invasão romana. No final, dará certo. É questão de paciência.Bata levemente durante 500 anos. A massa crescerá e revelará um povo urbano, meio escravo/meio livre, que falava latim vulgar e sofisticou o comércio e a agricultura. Enfim, quase um luxo.Introduza os Bárbaros. Primeiro os Alanos, Vândalos e Suevos. Capriche nos Suevos pois eles chegam para marcar presença: adoram trabalhar com enxadas e logo escolherão terras para cultivar. Por favor, convença-os a abandonar os instrumentos agrícolas às margens da vasilha. Alguém pode quebrar o dente quando o português for servido.Descanse a colher de pau. Os romanos embolaram tanto o meio de campo que a turma abriu os braços para os novos conquistadores. Deixe a natureza agir. Você verá que, infiltrados na massa, estes bárbaros inaugurarão a era dos portugueses de olhos claros – um charme.Adicione os Visigodos romanizados – ou Federados, como os romanos chamavam os povos conquistados que, de rabo entre as pernas, lutavam para defendê-los. Espertamente, o Império de Roma utilizava a estratégia de lançar bárbaros contra bárbaros. Mais ou menos como os norte-americanos de hoje, que engrossam seu exército com negros e latinos da periferia – alguém ainda duvida que a História se repete?Misture cuidadosamente. Este momento é delicado: o sucesso do português dependerá, exclusivamente, de sua competência culinária. O gosto dos Visigodos deve sobrepôr-se ao dos Vândalos e dos Alanos. Apenas suavemente os bárbaros vencidos perfumam o prato - quase uma especiaria, o toque de classe.Quando Vândalos e Alanos se dissolverem, bata vigorosamente pois Visigodos e Suevos tenderão a encaroçar por 150 anos. Mantenha-se atento à receita. Não pare de bater nem mesmo quando os Visigodos argumentarem serem os inventores do status quo da sociedade medieval portuguesa: clero, nobreza e povo – grande novidade. Faça-se de surdo e, até o último Visigodo desmanchar, capriche em revolver a massa. Afinal, Visigodos são guerreiros: podem armar uma falseta e solar o português.Espere inúteis três séculos – Visigodo é um chuchu histórico, só faz volume, não larga gosto - e jogue os árabes e mouros. A massa ficará mais encorpada, adquirirá novos contornos, novas falas, novas técnicas, uma nova arquitetura. O sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, autor de Casa Grande & Senzala, assinala que é neste momento que surge o português típico, além de um original subgrupo característico do Norte, emblemático da milenar cruza de raças: homens morenos, cabelos castanhos, escuros olhos mouros, com barba e bigode louros ou ruivos.O Brasil que - no final do século XIX, início do XX - recebeu maciça imigração de lusitanos do Norte, tem incontáveis homens morenos de barba clara. A maioria não sabe, mas eles são os representantes tropicais da malemolência lusa, useira e vezeira em misturar o próprio sangue ao sangue dos visitantes - eta povo hospitaleiro, este que nos descobriu.Amasse, delicadamente, os islâmicos e os judeus sefarditas que, aos punhados, você veio introduzindo entre um e outro ingrediente. Deixe descansar, eles se aglutinarão naturalmente. Naquele tempo, estes dois povos, amigos, interagiam sem culpas.Nesta altura, o português estará quase pronto. Agora, basta levar ao forno bem quente – eles são passionais, não assam em banho-maria.Com o açúcar, faça uma calda em ponto de bala. Adicione cristãos a gosto, de todos os matizes e origens. Está pronto o português.Desenforme e sirva-os ao Novo Mundo.


Angela Dutra de Menezes


In "O Português Que Nos Pariu"

1 comment:

zap said...

LINDO!Absolutamente LINDO!
Catarina isto é um pitéu que só dá vontade de nem sei! Talvez porque, sei lá! Mesmo assim, apesar de,acho que, enfim. No entanto, no meio disto tudo, Qui sa?
Obviamente que é certo sumariamente, não obstante, que obliquamente, é indiscutível, e diria indubitável, a evidência aclamável inverosivelmente diferente!

O que quis dizer com este palavriado todo - que não tem ponta por onde se pegue - ao certo, ao certo, nada mais que está magnífico este excerto!
Direi até, belíssimo!

Não me lembrava, eu mesma, da miscelânea que carregamos no código genético!!! C'um caneco, hem!? Ele há coisas, que até elas mesmas duvidam!

Vá, linda, muitos sucessos, grandes e bons é o que eu quero que tu tenhas!!!! Venho eles!!!!! Venham!!!!

Bêjocas grandes

Pfui!